Dirceu Ayres
O ex-presidente Luiz Inácio da Silva usurpa o poder
de suas criaturas, é o que se diz sobre seus movimentos de interferência
explícita no governo Dilma Rousseff e nos primeiros acordes da administração
Fernando Haddad na Prefeitura de São Paulo. Lula é alvo de toda sorte de
críticas por desenhá-los como meras marionetes e tentar exercer de fato um
poder que de direito não possui. Não foi eleito, portanto não tem razão para se
reunir com a equipe de Haddad para "traçar diretrizes". Não recebeu
delegação presidencial para atuar como coordenador e, no entanto, age como se
fosse à eminência mais nítida do governo federal. Isso é
o que parece; não necessariamente é o que acontece.Primeiro, porque Dilma e
Haddad detêm o poder de direito, estão lá sentados nas cadeiras que lhes
couberam por candidaturas ungidas pelo criador e corroboradas pelo eleitor.
Isso ninguém lhes tira.Segundo, porque têm a perfeita noção de que estão à
frente de duas importantes trincheiras de um projeto partidário cujo condutor é
Lula. Estão - todos os participantes dessa "marcha" - pouco ligando
para essas formalidades que assombram analistas da cena política. Querem mais é
que o chefe suba ao palco. Quanto mais o ex-presidente exercita suas artes de
atrair todas as atenções, menos o PT precisa tratar de seus problemas com a
ética e com (a falta de) resultados concretos de sua gestão federal. O debate
nacional se desvia dos problemas reais para uma questão surreal. É como disse o ex-secretário geral da
Presidência Luiz Dulci: "A movimentação de Lula é natural e desejável para
o PT".Até semana passada, crescia o debate sobre inflação, investimentos,
fornecimento de energia, maquiagem de dados das contas governamentais, PIB
pífio, excesso de interferência estatal na economia, reclamações de políticos e
empresários, construção de alternativas eleitorais para 2014. Até a reunião com a equipe de Haddad para
produzir fotografia passível de gerar análises sobre a interferência de Lula, o
PT ainda enfrentava rescaldo do julgamento do mensalão, graças à iniciativa da
juventude petista de promover "jantar vaquinha" para ajudar a pagar
as multas dos condenados. Como se José Dirceu, por exemplo, precisasse de
auxílio para juntar R$ 676 mil. Até
então Lula estava calado, fugindo de jornalistas por lavanderias de hotel para
não comentar as acusações contra sua protegida Rosemary Noronha e o depoimento
de Marcos Valério à Procuradoria-Geral da República, que ensejou pedido de
abertura de investigação contra o ex-presidente no esquema posto a nu pelo
Supremo Tribunal Federal. Nos
últimos dias a pauta mudou: são os encontros de Lula com secretários,
aconselhamentos de Lula para Dilma mudar o rumo do governo, anúncios de
reuniões dele com ministros, a caravana de Lula País afora, a conversa de Lula
com a presidente nesta sexta-feira, o papel de Lula como articulador da base no
Congresso, a inadequação da conduta de Lula, enfim, uma virada de agenda com
Lula ao centro em seu mais confortável papel. Critica-se o ex-presidente por não "desencarnar” do cargo como
havia prometido, levantam-se bandeiras em defesa da autonomia de Dilma,
aceitam-se versões de que ela estaria desolada com essa interferência e, assim,
cumpre-se exatamente o roteiro que interessa a Lula, ao Planalto e ao PT: fazer
do ex-presidente o centro de tudo, privilegiando o acessório (as andanças dele)
em detrimento do principal (as questões éticas e administrativas em aberto).
O truque não é novo, mas continua
eficaz porque há quem caia nele: por vontade ou falha de percepção. Resta
conferir o efeito da realidade adiante sobre o prazo de validade desse tipo de
dom de iludir a quem se dispõe a ceder às artimanhas do ilusionismo. Coluna
de Dora Kramer, no Estadão
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